quinta-feira, 14 de junho de 2012

Riscos Juridicos

Sistema judicial e mercado de crédito no Brasil_________________________________________________________________________________________________
Pedro Fachada, Luiz Fernando Figueiredo e Eduardo Lundberg*
Resumo: Este texto procura contribuir para o entendimento da complexa relação entre o mercado de crédito e o sistema judicial no Brasil. O custo do crédito ao tomador é associado à elevada taxa de inadimplência bancária, à má qualidade das garantias contratuais e à morosidade e alto custo da recuperação por meios judiciais. Em conseqüência da incapacidade do sistema judicial em assegurar a recuperação rápida e integral dos empréstimos inadimplidos, o conjunto da sociedade arca com um aumento do prêmio de risco embutido no spread e com uma menor oferta de recursos.
Palavras-chave: Mercado de crédito, sistema judicial, inadimplência bancária, spread bancário, taxa de juros.
Introdução
Este texto examina os efeitos das atuais disfuncionalidades do sistema judicial sobre o mercado de crédito no Brasil. Mais especificamente, procura mostrar como um judiciário ágil e eficiente, ao assegurar o respeito aos contratos celebrados no mercado de crédito, pode favorecer a oferta de recursos e diminuir o custo dos empréstimos bancários.
Desde 1999, o Banco Central vem se debruçando no diagnóstico das causas dos altos spreads praticados pelos bancos em suas operações de crédito, como parte do projeto “Juros e Spread Bancário no Brasil”. Esse projeto tem proposto uma série de medidas de longo prazo voltadas à redução dos custos dos empréstimos bancários e à restauração de uma cultura de crédito no País, revelando-se na prática um excelente estudo de caso da interação entre justiça e política econômica.
Não obstante os avanços recentes, duas características ainda resumem o mercado de crédito no Brasil: oferta reprimida e custo elevado. O volume de empréstimos no País fechou o ano de 2002 em 24% do PIB. Desse total, uma fatia significativa é relativa a repasses de créditos externos (15,2% do total), repasses e refinanciamentos com recursos do BNDES (22,8%) e de outras fontes oficiais (0,8%), assim como recursos bancários obrigatoriamente direcionados para atividades específicas, como o crédito imobiliário (5,8%) e o rural (8,8%). O chamado crédito livre, que pode ser alocado a critério do agente financeiro com taxas livremente pactuadas entre as partes, representava 41,2% do total, ou o equivalente a meros 9,9% do PIB.
Gráfico 1Composição do Crédito – Dezembro de 2002

Fonte: Banco Central
A primeira seção deste texto analisa as causas do elevado custo do crédito no Brasil, destacando os efeitos da inadimplência e o papel das garantias contratuais. A seguir, examinamos as conseqüências da morosidade do sistema judicial sobre o mercado de crédito, enfocando em particular o custo da recuperação dos empréstimos inadimplidos. A seção final discute as medidas propostas pelo Banco Central como parte do projeto “Juros e Spread Bancário no Brasil”, orientadas no sentido de mitigar os riscos jurídicos envolvidos na concessão de empréstimos. O texto apresenta ainda um apêndice com o conjunto amplo de iniciativas adotadas nos últimos anos pelo governo para a redução dos spreads bancários.
1. Custo do crédito no Brasil: a inadimplência e o papel das garantias
O custo do crédito numa economia depende de uma série de variáveis macroeconômicas e estruturais, entre as quais podemos destacar:
  • a taxa básica de juros, determinada pelo banco central;
  • os recolhimentos compulsórios dos bancos na autoridade monetária;
  • a taxa de inadimplência bancária;
  • a base jurídica para a renegociação ou recuperação dos empréstimos não pagos;
  • a carga tributária incidente sobre as operações de crédito;
  • o grau de estabilidade da economia.
Como se observa, o crédito não depende apenas da autoridade monetária, envolvendo também aspectos fiscais, institucionais e jurídicos. Depende ainda, em larga escala, da expectativa dos agentes econômicos quanto à manutenção do quadro de estabilidade econômica e institucional.
No Brasil, a taxa média de juros das operações de crédito do sistema bancário situava-se em 51,0% ao ano no fim de 2002. O spread bancário, diferença entre a taxa de aplicação e a taxa de captação dos bancos, alcançava 31,1% ao ano na mesma data. Essas taxas escondem uma importante característica do mercado de crédito, que é a diferença substancial incorrida por tipo de tomador. Com efeito, o spread médio nas operações com empresas, da ordem de 16,2% ao ano em dezembro de 2002, era aproximadamente a terça parte do spread cobrado nas operações com pessoas físicas, que atingia 54,5% na mesma ocasião.

Gráfico 2
Spread Bancário Consolidado (% ao ano)


Fonte: Banco Central

Para cada categoria de tomador, os spreads também divergem substancialmente, de acordo com a modalidade do contrato. No caso de pessoas físicas, o spread médio para a aquisição de veículos alcançava 23,5% ao ano em dezembro de 2002 enquanto o spread do cheque especial chegava a 142,2% no mesmo mês. Circunstância semelhante ocorre nos empréstimos a pessoas jurídicas, onde a operação de vendor registrava um custo além da taxa de captação bancária de 7,1% frente a 55,6%1 para a modalidade de conta garantida . O Quadro 1 resume os spreads praticados nas principais operações de crédito prefixado, por modalidade, para os meses de dezembro de 2000 a 2002.
Quadro 1
Spread - Operações de Crédito Prefixado (% ao ano)

Modalidade
dez.00 dez.01 dez.02
Total Geral 36,1 39,9 41,8
Pessoa Jurídica 21,6 24,4 23,5
Desconto de Duplicatas 29,5 31,5 31,3
Capital de Giro 15,8 17,7 14,5
Conta Garantida 39,1 45,1 55,6
Aquisição de Bens 13,5 13,3 13,4
Hot money 24,2 27,5 30,3
Vendor 4,4 5,5 7,1
Pessoa Física 49,7 51,0 53,9
Cheque Especial 137,5 141,6 142,2
Crédito Pessoal 50,9 64,0 63,4
Aquisição de Bens - Veículos 17,5 15,9 23,5
Aquisição de Outros Bens 49,7 49,4 53,1
Fonte: Banco Central
A inadimplência ajuda a explicar a disparidade nos spreads incorridos por empresas e por pessoas físicas. O Quadro 2 revela que o percentual médio de créditos em atraso acima de 15 dias situava-se em 4,3% do saldo de créditos livres para pessoas jurídicas e em 14,8% para pessoas físicas na posição de dezembro de 2002. Esse hiato se mantém no reconhecimento de créditos não pagos em prazos superiores. Adicionalmente, observa-se no Gráfico 3 uma tendência ao longo dos últimos 30 meses de aumento moderado da insolvência de pessoas físicas (acima de 90 dias), enquanto que para o segmento empresarial a tendência no mesmo período foi inversa.
Quadro 2
Inadimplência Bancária no Crédito Livre - Dezembro 2002 (%)

Modalidade Acima de 15 dias Acima de 90 dias
Pessoa Jurídica 4,3 2,3
Hot money 12,2 4,7
Desconto de Duplicatas 5,9 4,4
Capital de Giro 5,8 3,4
Conta Garantida 3,0 1,6
Aquisição de Bens 5,4 1,8
Vendor 1,0 0,4
Adiantamento de Contrato de Câmbio 1,8 0,3
Repasses Externos 1,0 0,2
Pessoa Física 14,8 8,0
Cheque Especial 10,8 8,4
Crédito Pessoal 14,2 8,6
Aquisição de Bens - Veículos 10,5 2,9
Aquisição de Outros Bens 19,1 11,4
Fonte: Banco Central
Gráfico 3
Inadimplência Bancária – Atrasos acima de 90 dias (%)


De acordo com exercícios econométricos realizados pelo Banco Central, a inadimplência bancária é responsável por cerca de 17% do spread. Isso equivale a dizer que, tudo o mais constante, se a taxa de default fosse reduzida a zero ou se o sistema judicial assegurasse a certeza de recuperação ou renegociação dos empréstimos inadimplidos, o spread bancário diminuiria cerca de 7 pontos percentuais2.
Outro parâmetro fundamental para explicar a desproporção dos spreads entre as várias modalidades de crédito diz respeito ao papel das garantias. Tome-se o custo do crédito para a aquisição de veículos comparativamente aos demais contratos de financiamento para pessoas físicas. Embora na prática os tomadores sejam os mesmos e guardem igual risco de crédito, a diferença origina-se no fato de que o veículo financiado constitui em geral a garantia da operação e pode ser executado pelo credor, prerrogativa nem sempre assegurada pelas demais modalidades contratuais.
Entre as várias opções de financiamento oferecidas ao mercado, aquela de menor custo é o Adiantamento sobre Contratos de Câmbio (ACC), que consiste numa antecipação de recursos vinculados a contratos de exportação. Como existem controles governamentais estritos para inibir o registro de exportações “frias”, os ACC têm por colateral títulos de boa qualidade a receber no exterior, usualmente de empresas de primeira linha. Essa característica explica a inadimplência historicamente baixa registrada por esses adiantamentos (0,3% em 2002), e em conseqüência o baixo spread.
Como destacado no Quadro 1, o spread médio praticado em contratos de vendor é o mais competitivo entre as operações prefixadas. Essa é outra situação em que a qualidade das garantias ajuda a explicar o menor custo do financiamento. Na prática, o vendor é uma linha de crédito aberta pela empresa compradora (em geral uma grande empresa) junto a um banco a favor de seus fornecedores (em geral, pequenas empresas). Nesse caso, o risco de crédito é transferido pelo intermediário financeiro do devedor para a empresa que fez originariamente a cessão do crédito.
O Quadro 3 apresenta os resultados de uma pesquisa não publicada conduzida pelo Banco Central em setembro de 2001 junto a 93 instituições financeiras, responsáveis por 85% da oferta total de crédito livre da economia. As instituições foram perguntadas sobre procedimentos operacionais relativos a concessão de empréstimos, garantias e prazos necessários para a recuperação de créditos não pagos.
De acordo com o ponto de vista colhido na pesquisa, o problema mais grave não parece estar associado à existência de garantias, pelo menos nos empréstimos a empresas, mas sim à sua qualidade e facilidade de cobrança. Como se observa, a maior parte da oferta de crédito corporativo apresenta alguma forma de colateral. A exceção são as operações de hot money, que são financiamentos de curto prazo (até 30 dias) contratados de forma simplificada. A importância dessa exceção deve ser minimizada, uma vez que o saldo das operações de hot money não soma 0,5% do total do crédito a empresas.
Note-se, entretanto, que os empréstimos a pessoas físicas são majoritariamente contratados sem garantia. Esse é o caso específico do cheque especial e do cartão de crédito, duas linhas de crédito com spreads reconhecidamente exorbitantes. Por outro lado, o financiamento para aquisição de veículos é 100% coberto por garantia fiduciária, reduzindo o risco e favorecendo o spread. De fato, a garantia fiduciária se configura como a forma mais eficiente de oferecer colateral, pois representa na prática a transferência da propriedade do bem financiado para o credor.
Quadro 3
Garantias nas Operações de Crédito – Setembro 2001 (%)
Modalidade
Sem Garantia
Aval e Fiança
Hipoteca
Garantia Fiduciária e Outras
Pessoa Jurídica



ACC
29,7
13,3
0,3
56,7
Hot Money
61,4
36,9
-
1,7
Capital de Giro
38,0
24,0
7,4
30,6
Conta Garantida
36,2
43,6
0,2
20,0
Vendor
3,2
89,0
0,1
7,7
Pessoa Física



Aquisição de Bens - Veículos
-
-
-
100,0
Crédito Pessoal
71,9
19,0
-
9,1
Crédito Imobiliário
-
-
97,6
2,4
Cheque Especial
85,8
12,2
-
2,0
Cartão de Crédito
100,0
-
-
-
Fonte: Banco Central
2. A morosidade judicial e o mercado de crédito
Um espelho das restrições do Judiciário no Brasil é apresentado no Quadro 4, que revela para o período 1991-2001 o percentual de processos julgados anualmente pela justiça comum frente ao total de processos entrados. Esse número oscilou em torno de 70% até 1997, mas reduziu-se após 1998. Cabe destacar que o crescimento elevado do número de ações entradas na Justiça impediu que o maior número de processos julgados ano a ano se traduzisse em aumento de eficiência3. Como desdobramento desse quadro, a morosidade aparece como um dos principais gargalos da Justiça brasileira.
Quadro 4
Justiça Comum
Processos Entrados e Julgados – 1991 / 2001
Ano
Entrados
Julgados
% de Julgados
1991 4.250 2.947 69%
1992 4.561 3.215 70%
1993 4.420 3.348 76%
1994 3.423 2.534 74%
1995 4.266 2.971 70%
1996 5.902 4.107 70%
1997 6.965 5.472 79%
1998 7.720 5.188 67%
1999 8.717 5.792 66%
2000 9.463 6.165 65%
2001 (p) 9.490 8.063 85%
(p) - dados preliminares para 2001 (não inclui todos os estados da Federação)
Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, Supremo Tribunal Federal

A morosidade judicial, ao dificultar o recebimento de valores contratados, retrai a atividade de crédito e provoca o aumento dos custos dos financiamentos por meio de dois canais. Primeiro, a insegurança jurídica aumenta as despesas administrativas das instituições financeiras, inflando em especial as áreas de avaliação de risco de crédito e jurídica. Segundo, reduz a certeza de pagamento mesmo numa situação de contratação de garantias, pressionando o prêmio de risco embutido no spread.
O Quadro 5 apresenta estimativas para o prazo médio necessário para a recuperação judicial de créditos não pagos há mais de 60 dias. As informações foram obtidas com base na mesma pesquisa conduzida pelo Banco Central em setembro de 2001, que serviu de fonte para a elaboração do Quadro 3. De acordo com as informações prestadas pelas instituições financeiras, a recuperação judicial com êxito requer entre 20 meses em média, no caso de garantia fiduciária, até 37 meses para a garantia fidejussória.
Quadro 5
Prazo de Recuperação por Tipo de Garantia

Hipoteca
Aval e Fiança
Garantia Fiduciária
Outras Formas de Garantia
Prazo (em meses)
24
37
20
31
Fonte: Banco Central
Outro aspecto fundamental quanto ao desempenho da Justiça para o mercado de crédito diz respeito às despesas incorridas na etapa judicial. O Quadro 6 apresenta estimativas ad-hoc para a expectativa de recuperação de empréstimos em processos judiciais, para quatro contratos hipotéticos entre R$ 500 e R$ 50 mil. O cálculo considera não apenas estimativas para as despesas processuais diretas (custas, advogados, oficial de justiça e perícia, cartórios, entre outros), mas também a taxa de desconto intertemporal aplicada sobre o capital e arbitrada em 20% a.a.. Os prazos máximos para cada fase do processo foram definidos com base em informações fornecidas por instituições financeiras. Como os custos fixos nos processos de cobrança são elevados, os empréstimos de menor valor unitário apresentam expectativa de recuperação proporcionalmente menor.
Segundo nossos cálculos, o custo de recuperação para empréstimos até R$ 1.000, se atravessadas todas as fases processuais, supera ou iguala aproximadamente o montante do principal. No caso de um crédito de R$ 50 mil, a expectativa de recuperação é de 24,1% do principal se exigidas todas as fases de execução. A cobrança extra-judicial, mais simples, mas que obriga a despesas como correio, protesto, negativação e comissão paga a cobrador especializado, apresenta um valor esperado que estimamos variar entre 56,8% e 83% nos dois extremos. Em síntese, é um quadro que desestimula fortemente a alternativa de apelação ao Judiciário.
Quadro 6
Processo de Cobrança Judicial
Valor Esperado de Recuperação de Contratos de Crédito
Fases do Processo R$ 500 R$ 1.000 R$ 5.000 R$ 50.000
Cobrança Extrajudicial Simples R$ 284 R$ 680 R$ 4.003 R$ 41.498
(até um ano) 56,8% 68,0% 80,1% 83,0%
Fase de Conhecimento Judicial R$ 14 R$ 221 R$ 1.982 R$ 21.878
(até três anos) 2,80% 22,1% 39,6% 43,8%
Fase de Execução Judicial zero R$ 33 R$ 1.011 R$ 12.054
(até cinco anos) 3,3% 20,2% 24,1%
Fonte: Banco Central
Em decorrência da insegurança dos contratos e do funcionamento deficiente do sistema judicial, o bom tomador de crédito no Brasil arca com um custo extraordinário, independente de seu histórico de crédito e de sua capacidade de pagamento. Na prática, esse custo adicional é repartido por toda a sociedade, na forma de aumento do spread e de encolhimento na oferta de crédito.
3. Medidas para Mitigar os Riscos Jurídicos
Como já destacado, desde 1999 o Banco Central vem implementando um conjunto de medidas direcionadas a melhorar e resgatar uma cultura de crédito no Brasil e reduzir os riscos de crédito assim como as fricções na intermediação financeira.
São três os principais focos da atuação do Banco Central como parte dessa estratégia: (i) a minimização dos riscos jurídicos; (ii) a promoção da concorrência e transparência no mercado de crédito; e (iii) a atuação sobre a cunha fiscal, os compulsórios e a regulação bancária. De forma resumida, pretende-se atingir os seguintes objetivos:
i. A ampliação da segurança jurídica dos contratos é um aspecto fundamental. As leis que regem os contratos de crédito devem ser claras e objetivas e sua cobrança ou renegociação judicial deve ser ágil e eficiente, permitindo que os credores mitiguem as perdas associadas à insolvência. Um sistema judiciário ineficaz ou pró-devedor estimula a inadimplência e inibe a atividade creditícia, induzindo as instituições financeiras a maior rigor na seleção de seus clientes e pressionando o prêmio de risco exigido do conjunto de tomadores.
ii. A promoção da transparência e da concorrência é o segundo foco, e objetiva permitir que as instituições financeiras disponham de informações relevantes sobre seus clientes, de forma a poder selecionar e apreçar adequadamente seus riscos. É crucial também assegurar aos tomadores de crédito o direito à transparência e à lisura na atuação das instituições financeiras.
iii. A ação sobre a cunha fiscal, a política monetária e a regulação bancária tem sofrido limites pelas restrições de caráter macroeconômico. O objetivo é desonerar a intermediação financeira de impostos distorsivos, do impacto dos recolhimentos compulsórios e dos efeitos de exigências regulatórias. Entretanto, trata-se de iniciativas que dependem de ambiente econômico propício, o que não ocorreu nos últimos dois anos.

O Apêndice apresenta um breve resumo do conjunto de iniciativas propostas e adotadas desde 1999 como parte do esforço para a redução dos juros e do spread nas operações de crédito. Dado o enfoque deste texto, nos concentraremos nas medidas de caráter jurídico adotadas no período4.
Para minimizar as perdas incorridas com a recuperação judicial dos créditos inadimplidos, o governo instituiu a Cédula de Crédito Bancário (CCB), um instrumento de crédito de trâmite judicial simplificado. Basicamente, a vantagem da CCB é afastar a fase de conhecimento judicial. Em outras palavras, visa evitar que o credor, antes de poder reclamar a dívida, gaste até três anos apenas para provar que efetivamente é credor. Com efeito, o principal objetivo da nova Cédula é dar maior agilidade aos processos de cobrança levados ao Judiciário. A regulamentação da Medida Provisória que instituiu as CCB foi aprovada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) em 2002, mas ainda aguarda a votação no Congresso para ser transformada em lei.
Com o mesmo objetivo, foi ampliado o alcance da alienação fiduciária em garantia. Como já discutido acima, a alienação fiduciária é a forma mais eficaz de constituir colateral na realização de uma operação de crédito, pois significa a efetiva transferência da propriedade do bem ao credor fiduciário. No caso de não pagamento da obrigação, basta ao credor vender o bem para cobrir a dívida e as despesas incorridas nesse processo, entregando ao devedor eventual saldo remanescente. A possibilidade de alienação fiduciária, antes restrita a bens móveis, principalmente veículos, já havia sido ampliada para bens imóveis em 1997. Desde 2001, passou a abranger outros bens e direitos, como títulos e outros créditos.
No âmbito do sistema financeiro, foi permitido acordo para a compensação e a liquidação de obrigações (netting). Segundo esse dispositivo, as compensações de pagamento não serão afetadas pela decretação de insolvência civil, concordata, intervenção, falência ou liquidação extrajudicial. As operações típicas são aquelas realizadas com instrumentos derivativos, utilizados para proteção (hedge) contra variações inesperadas nos indicadores econômicos dos contratos, como juros, câmbio, etc. Não faz sentido, por exemplo, que na inadimplência de um devedor por um contrato em moeda estrangeira, os credores privilegiados sejam beneficiados pela venda de uma opção de compra que garante parte dessa dívida, prejudicando a instituição financeira credora.
Para evitar que alguns devedores continuassem a utilizar a morosidade judicial em seu benefício, o governo editou Medida Provisória esclarecendo sobre a legalidade da cobrança de juros sobre juros (anatocismo) pelas instituições financeiras. Desde a aprovação da Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, que estabeleceu as competências do CMN e do Banco Central, entende-se que a “lei da usura” de 1933 relativamente ao setor financeiro encontra-se revogada. Em função de regulamentação baixada pelo CMN e pelo Banco Central, nosso sistema financeiro funciona, tanto na captação quanto na aplicação, com base no cálculo de juros compostos, a exemplo do que ocorre no resto do mundo. Entretanto, uma interpretação adotada pela Justiça, com base na “lei da usura”, questionava a legalidade dessa regulamentação das autoridades monetárias.
No sentido de garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica dos contratos e transações eletrônicas, foi instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). A criação dessa infra-estrutura constituiu-se em importante iniciativa para reduzir o risco jurídico das transações financeiras transitadas por meios eletrônicos.
Finalmente, o Banco Central tem contribuído com o projeto de lei de falências, que está em fase final de tramitação na Câmara dos Deputados. O objetivo é aperfeiçoar o sistema falimentar brasileiro, diminuindo os riscos e custos desses processos, evitando o fechamento de unidades produtivas e preservando empregos. Atualmente, o procedimento da falência é bastante demorado e resulta, em geral, no sucateamento dos ativos da empresa falida, com prejuízo para os trabalhadores, fornecedores e demais agentes econômicos. A concordata, por sua vez, é uma alternativa rígida e de pouca flexibilidade para a recuperação de empresas, com o sistema judiciário não dando um amparo adequado às alternativas informais de salvamento empresarial. Além disso, a rigidez das regras de sucessão tributária é um fator importante de desvalorização dos ativos das empresas, dificultando sua recuperação.
Apêndice
Medidas Propostas
Medidas Adotadas
a) Redução dos compulsórios: Os recolhimentos compulsórios sobre os depósitos à vista foram reduzidos de 75% para 45% entre 1999 e 2000. Em 2002, foi criada uma exigência adicional de 8% e em 2003, elevados de 45% para 60%. Os recolhimentos compulsórios sobre depósitos a prazo foram reduzidos de 20% para 0% em 1999. Entre 2001 e 2002, voltaram a ser elevados para 15%, sendo ainda criada uma exigência adicional de 8%.
b) Redução do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras): Redução do IOF nas operações com pessoas físicas, de 6% para 1,5%, a partir de outubro de 1999.
c) Aperfeiçoamento do sistema de pagamentos O novo Sistema de Pagamentos Brasileiro entrou em operação em 22 de abril de 2002, eliminando o risco de crédito incorrido diariamente pelo Banco Central na cobertura da conta Reservas Bancárias.
d) Modificações nas regras de classificação das operações de crédito e de constituição de provisões Implementado em 2000, aumentou a segurança das operações e a transparência dos balanços das instituições financeiras.
e ) Transparência das operações bancárias Desde outubro de 1999, as informações básicas sobre os juros cobrados pelas instituições financeiras passaram a estar disponíveis na página do Banco Central na Internet. A partir de 2002, as instituições passaram a prestar informações diárias mais detalhadas de suas operações de crédito.
f ) Aperfeiçoamento dos balanços contábeis das instituições financeiras O Banco Central desenvolveu ampla e profunda revisão do COSIF, ajustando as regras contábeis a padrões internacionais e objetivando maior transparência das operações e da situação de cada instituição.
g ) Ampliação da base de cobertura da Central de Risco de Crédito Reduzido de R$ 50 mil para R$ 5 mil o valor mínimo para identificação de clientes que devem ser informadas pelas instituições financeiras ao sistema Central de Risco de Crédito, gerido pelo Banco Central.
h ) Aumento de informações da Central de Risco de Crédito O Banco Central está reestruturando a Central de Risco de Crédito. O objetivo é aumentar o número e a qualidade das informações disponíveis, assim como agilizar o processo de consultas pelas instituições financeiras. A ativação plena da nova Central de Risco está prevista para agosto de 2003.
i) Portabilidade de informações cadastrais Desde 2001, as instituições financeiras estão obrigadas a fornecer a seus clientes informações cadastrais dos dois últimos anos, compreendendo dados pessoais, histórico das operações de crédito e o saldo médio mensal mantido em conta corrente e aplicações financeiras. Essas informações podem ser fornecidas a terceiros, desde que com autorização formal do cliente.
j) Maior concorrência no cheque especial Os bancos estão obrigados a fornecer, desde 2001, informações mais detalhadas sobre os encargos financeiros cobrados em operações de cheque especial. As informações devem compreender o período de incidência da cobrança, a taxa de juros cobrada e os valores debitados a cada mês.
k) Securitização de recebíveis Foi permitido o funcionamento de fundos de investimento em direitos creditórios.
l) Derivativos de crédito Autorizada a realização de operações com derivativos de crédito.
Proposição de medidas legais no âmbito do Poder Legislativo:
a) Criação da Cédula de Crédito Bancário A Cédula de Crédito Bancário visa disseminar a utilização de um título de crédito mais simples e eficaz no trâmite judicial.
b) Esclarecimento sobre anatocismo Editada Medida Provisória esclarecendo que nas operações do Sistema Financeiro Nacional é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano, não ferindo a Lei da Usura.
c) Contrato eletrônico de crédito Em 2001, foi instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica dos contratos transitados pela Internet e outros meios eletrônicos.
d) Aperfeiçoamento dos instrumentos de garantia nas operações de crédito Alienação Fiduciária – Permitida a aplicação de alienação fiduciária em garantia de coisa fungível ou de direito.
Compensação de Pagamentos – Contemplada a realização de acordo para compensação e a liquidação de obrigações no âmbito do Sistema Financeiro Nacional.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, F.H. et al. Federalismo Fiscal, Eficiência e Eqüidade: uma Proposta de Reforma Tributária. São Paulo: FGV, 1998.
Constituição da República Federaitva do Brasil de 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.senado.gov.br/legislação>. Acesso em: 31 jan 2003.
GONÇALVES, R. Retomada do desenvolvimento e distribuição da riqueza. Teoria & Debate, n.º 14, p.58-61, abril-junho, 1991.
MARQUES, R. M. A proteção social e o mundo do trabalho. São Paulo: Bienal, 1997.
MARQUES, R. M.; MENDES, A. O Financiamento do sistema público de saúde brasileiro. Série Financiamiento del Desarrollo. Santiago: Cepal, 82, 1999.
PIOLA, S.; BIASOTO JR., G. Financiamento do SUS nos anos 90. In NEGRI, BARJAS & GIOVANNI, G. (org.). Brasil: radiografia da saúde. Campinas: Unicamp, 2001.
RECEITA FEDERAL. Coordenação-Geral de Política Tributária. Carga Tributária no Brasil – 2002. Estudos Tributários 11. Brasília: Ministério da Fazenda, 2003.
REIS, C.O.O.; RIBEIRO, J.A.C.; PIOLA, S. Financiamento das Políticas Sociais nos anos 1990: o caso do Ministério da Saúde. In Texto para Discussão. Brasília: Ipea, n.º 802, 2001.
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* Versão revista do artigo apresentado no seminário "Reforma do Judiciário: Problemas, Desafios e Perspectivas", promovido pelo IDESP em São Paulo em abril de 2001. Quanto este artigo foi concluído, os autores eram, respectivamente, Chefe da Gerência de Relacionamento com Investidores, Diretor de Política
Monetária, e Consultor do Departamento de Estudos e Pesquisas do Banco Central do Brasil. Os autores agradecem a César Viana de Oliveira do Gerin/Banco Central, por disponibilizar os dados de pesquisa inédita conduzida junto às áreas de crédito das instituições financeiras. Como de hábito, as opiniões aqui defendidas são da inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição do Banco Central do Brasil.
1 A operação de vendor é uma cessão de crédito que permite a uma empresa vender seu produto a prazo e receber o pagamento à vista. A empresa vendedora transfere seu crédito ao banco e recebe o pagamento à vista. A conta garantida é um “cheque especial” para empresas, ou seja, é um crédito associado à conta corrente de pessoa jurídica, com um determinado limite pré-disponibilizado pelo banco.
2 O exercício de decomposição está apresentado no relatório “Economia Bancária e Crédito: Avaliação de Três Anos do Projeto Juros e Spread Bancário”, Banco Central do Brasil, 2002, disponível no endereço <http://www.bcb.gov.br/mPag.asp?codP=961&cod=890&perfil=1&idioma=P>
3 Dados preliminares para 2001mostraram uma elevação substancial desse percentual, em particular na justiça do Estado de São Paulo. Não obstante, como até a conclusão desta pesquisa o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário não dispunha de estatísticas consolidadas para o conjunto das unidades da federação, não foi possível inferir se essa tendência se confirmava a nível nacional.
4 O leitor interessado numa análise mais ampla do conjunto de medidas para a redução dos juros e Spread bancário deve consultar o já citado relatório “Economia Bancária e Crédito: Avaliação de Três Anos do Projeto Juros e Spread Bancário”.

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